A Justiça dos Iguais e a Dignidade dos Diferentes

Rogério Santos do Nascimento, Advogado

“Todos são iguais perante a lei.” Assim proclama, com solenidade, o artigo 5º da Constituição. Mas não há mentira mais bem contada nos salões da República do que essa. Porque a igualdade, no Brasil, é um fenômeno episódico, restrito a um instante específico da vida cidadã: o instante do voto. Ali, pobres e ricos possuem idêntico valor político, medido em um título eleitoral. Passado o pleito, contudo, a igualdade se desfaz, dilui-se nos labirintos institucionais e revela o abismo entre a dignidade prometida e a realidade vivida.

Proclamam que os Juizados Especiais foram instituídos como instrumentos de democratização do Judiciário. Que foram criados para assegurar ao cidadão comum um acesso célere, simples e barato à Justiça. Uma promessa nobre, mas que, na prática, transmuta-se numa armadilha silenciosa.

O pobre, muitas vezes semi-analfabeto, é lembrado que pode ingressar sozinho no Juizado, sem advogado. Mas de que lhe serve tal prerrogativa, se ele sequer domina as palavras necessárias para relatar a sua dor, quanto mais para traduzir sua angústia em linguagem jurídica? Ali, diante de um balcão apinhado, sua voz ecoa fraca, soterrada pela burocracia e pela indiferença.

E onde estão os advogados, supostos defensores dos desvalidos? Encontram-se afastados, não por falta de compaixão, mas por crua realidade econômica: o Juizado Especial não lhes paga honorários sucumbenciais em causas contra a Fazenda Pública. Está lá, cristalino, no art. 55 da Lei nº 9.099/95, aplicado subsidiariamente à Lei nº 12.153/2009. Sem sucumbência, não há incentivo. E sem incentivo, não há advogado.

Mas há uma exceção gritante, uma exceção que revela o vício estrutural do sistema: quando o Estado é credor. Então, não existe teto de valor, nem Juizado Especial. Nenhuma lei limita o ímpeto arrecadatório do fisco. O legislador foi cristalino no inciso I do §1º do art. 2º da Lei nº 12.153/2009, que “Não se incluem na competência do Juizado Especial da Fazenda Pública (...) as execuções fiscais.”

Para cobrar tributos, o Estado não se satisfaz com o rito sumaríssimo. Arrasta o cidadão para a Vara da Fazenda Pública, onde prevalece o Código de Processo Civil, com toda sua pompa, rigidez e formalidade. E, se o contribuinte perde, ainda paga honorários sucumbenciais, previstos no art. 85 do CPC, ainda que o débito seja insignificante.

E onde, então, reside a igualdade? Não reside. Porque o mesmo Estado que exige celeridade, simplicidade e teto de valores quando está sendo demandado, se recusa a essas limitações quando se trata de ampliar sua arrecadação. Eis o cerne da injustiça: há duas justiças: uma para cobrar, outra para ser cobrado.

O pobre sofre a mesma dor que qualquer outro cidadão ao ter seus salários ou direitos negados pelo poder público. Mas, para ele, a solução oferecida é o Juizado Especial, onde o processo corre veloz, porém órfão de defesa técnica. Porque justiça célere sem advogado é como remédio sem substância ativa: não cura nada.

Enquanto isso, o legislador cruza os braços. Concede ao pobre o direito de peticionar sozinho, mas o abandona à própria sorte num ambiente hostil, técnico, hermético. Transforma a promessa de acesso à Justiça em farsa institucional. E assim, permanece incólume a estrutura que permite que só os litígios que envolvam cifras vultosas encontrem defensores prontos, porque esses, sim, alimentam honorários e movimentam sucumbências.

Mas o drama se agrava porque os órgãos de controle externo, que deveriam tutelar a legalidade e defender os interesses da sociedade, permanecem inertes. Engessados por nomeações políticas que a própria Constituição amarra ao crivo do Executivo, silenciam ante as violações mais gritantes à dignidade humana. O Ministério Público, por vezes, faz-se de cego; tão cego quanto a estátua da Justiça que ostenta a venda nos olhos, não como símbolo de imparcialidade, mas, cada vez mais, como metáfora de omissão.

E pensar que entoamos, com fervor, versos do Hino Nacional que clamam: “Se o penhor dessa igualdade conseguimos conquistar com braço forte…” Mas que igualdade é essa, se o pobre só vale o mesmo que o rico no dia da eleição, e nada além disso? Que igualdade é essa, se, findo o pleito, o braço forte do Estado volta-se não para proteger os vulneráveis, mas para garantir a si mesmo privilégios processuais, limites de valor, e blindagens institucionais?

“Verás que um filho teu não foge à luta,” diz ainda o Hino, mas esqueceu-se de prever que, sozinho, esse filho pode até não fugir à luta, mas será derrotado na primeira audiência, esmagado pela máquina jurídica do Estado, pela ausência de advogado e, sobretudo, pela burocracia que fala língua estranha à sua dor.

Dignidade da pessoa humana, dizem, é fundamento da República. Mas como falar em dignidade, se o próprio Estado, guardião maior da Constituição é o agente primeiro da ofensa, ao deixar servidores sem salário, ao negar assistência jurídica efetiva, ao limitar direitos por teto de valor, enquanto jamais impõe limites a si mesmo quando cobra tributos?

O pobre, na Justiça, segue tão invisível quanto sempre foi. Proclamam que o Juizado Especial existe para facilitar o acesso à Justiça, mas o que se vê é um funil estreito onde só passam as causas de pouco valor, pouco interesse, e pouca complexidade e onde não há quem fale em nome dos desassistidos.

Se há algo a reformar, que se comece pelo essencial: que se assegurem honorários, ainda que modestos, para o advogado que enfrenta o Estado em nome do pobre; que se crie uma Defensoria Pública efetivamente aparelhada para lidar com as lides da Fazenda Pública.

Ou que se reconheça, de uma vez por todas, que a celeridade não é valor absoluto, porque Justiça só existe quando há dignidade, igualdade e voz para todos.

Porque não basta garantir ao pobre o direito de ingressar sozinho no Juizado. É preciso garantir-lhe o direito de vencer. Para que, então, possamos cantar, sem vergonha ou hipocrisia, que “nossa vida no teu seio, mais amores,” seja, de fato, a vida digna que a Constituição prometeu, mas que, até hoje, não entregou.