Entre Orwell e a Constituição: Como o Judiciário Brasileiro criou a Jurisprudência da Exceção
By Rogério Santos do Nascimento
Advogado. Especialista em Direito Constitutional e Administrativo.
Introdução editorial
A Lex Pathway apresenta um artigo de análise crítica sobre um dos episódios mais controversos da história recente do Brasil. Em 2022, o Tribunal Superior Eleitoral, composto majoritariamente por ministros do Supremo Tribunal Federal, decidiu restringir a liberdade de expressão em nome da “lisura das eleições”. Tal ato abriu o precedente da relativização de cláusulas pétreas. Entre a literatura de Orwell e a dogmática constitucional, o texto demonstra como se consolidou a perigosa jurisprudência da exceção.
1. O episódio e sua gravidade
O episódio que marcou de forma indelével a ruptura do pacto constitucional brasileiro ocorreu em outubro de 2022, em meio ao julgamento pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que resultou na desmonetização de canais e na proibição de veiculação de documentário de cunho político durante a campanha presidencial. Em seu voto, a Ministra Cármen Lúcia, reconhecendo a absoluta vedação constitucional a qualquer tipo de censura, garantia consagrada como cláusula pétrea, admitiu, não obstante, que naquele “caso excepcionalíssimo” a liberdade de expressão poderia ser temporariamente restringida até o dia 31 de outubro, sob o argumento de resguardar a lisura, a higidez e a segurança do processo eleitoral.
“Não se pode permitir a volta de censura sobre qualquer argumento no Brasil. Este é um caso específico e que estamos na iminência de ter o segundo turno das eleições. A inibição é até o dia 31 de outubro, exatamente ao dia subsequente do segundo turno (...) Mas eu vejo isso como uma situação de excepcionalismo e que sim, de alguma forma, se isso se comprovar como censura deve ser imediatamente reformulada essa decisão”, destacou a Ministra, em voto acompanhado pela maioria.
Tal pronunciamento, amplamente repercutido pela imprensa e objeto de críticas em redes sociais e no Parlamento, revelou a contradição que se tornaria símbolo da derrocada do império constitucional: ao mesmo tempo em que reafirmava a impossibilidade de qualquer censura, a Suprema Corte Eleitoral criava o precedente da censura excepcional, admitindo a relativização de direito fundamental que, por sua natureza, não comporta gradações nem suspensões.
2. A Constituição e suas garantias pétreas
A Constituição da República de 1988 é clara, enfática e categórica: os direitos e garantias fundamentais não se submetem a graduações de conveniência política. O artigo 5º, núcleo duro do constitucionalismo brasileiro, dispõe que todos são iguais perante a lei e que gozam da inviolabilidade da vida, da liberdade, da igualdade, da segurança e da propriedade. No mesmo dispositivo, encontram-se comandos diretos que ressoam como cláusulas de absoluta impermeabilidade a restrições arbitrárias:
Art. 5º, IV – “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”;
Art. 5º, IX – “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença.”
E para não deixar margem a interpretações restritivas, o §1º do mesmo artigo estabelece: “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.” O constituinte originário, consciente das experiências autoritárias vividas pelo Brasil no século XX, conferiu a esses direitos a natureza de cláusulas pétreas (art. 60, §4º, IV). Isso significa que nem mesmo o poder reformador pode relativizá-los; quanto mais, portanto, um tribunal, ainda que integrado por ministros do Supremo Tribunal Federal, poderia fazê-lo em caráter “excepcionalíssimo”.
A decisão do Tribunal Superior Eleitoral em 2022, ao proibir a veiculação de documentário em pleno período eleitoral, foi, na substância, censura prévia. Ainda que travestida de medida “temporária” e “protetiva”, não há como negar que consistiu em ato estatal de restrição ao livre exercício da comunicação e da atividade intelectual.
A gravidade do precedente pode ser melhor compreendida à luz de dois julgados paradigmáticos do Supremo Tribunal Federal:
ADPF 130 (Rel. Min. Ayres Britto, j. 30/04/2009) – ao declarar que a antiga Lei de Imprensa não foi recepcionada pela Constituição de 1988, o STF afirmou, com todas as letras, que a liberdade de expressão possui “caráter preferencial” e que nenhuma forma de censura prévia é compatível com a ordem constitucional inaugurada em 1988.
ADIn 4815 (Rel. Min. Cármen Lúcia, j. 10/06/2015) – em julgamento que versou sobre as chamadas biografias não autorizadas, a Corte foi unânime em reafirmar que o controle sobre obras intelectuais só pode se dar a posteriori, jamais por meio de proibição prévia. A Ministra Cármen Lúcia, relatora, sintetizou: “censura é incompatível com a democracia.”
Ora, como conciliar esses precedentes vinculantes, firmados pelo Supremo Tribunal Federal em sede de controle concentrado, com a decisão de 2022 que, sob a justificativa da “lisura eleitoral”, impôs censura prévia a um documentário? A resposta é direta: não há conciliação possível. O que se viu naquele episódio foi a negação da Constituição por seus próprios guardiões.
3. O precedente e seus efeitos corrosivos
O voto da Ministra Cármen Lúcia, ao afirmar que “não se pode permitir a volta da censura” e, em seguida, admitir uma “excepcionalíssima” censura até 31 de outubro, revelou o abismo lógico e jurídico que se abriu: reconhecer a inconstitucionalidade e, mesmo assim, legitimá-la.
Esse raciocínio não é apenas juridicamente frágil; é corrosivo. Porque, se uma cláusula pétrea pode ser afastada por alguns dias, nada impede que o seja por meses ou anos. Se hoje se restringe uma obra documental, amanhã se restringe um partido, depois um culto religioso, uma pesquisa científica ou até mesmo a liberdade de votar e ser votado. A lógica da exceção mina o núcleo essencial da democracia.
Assim, sob a ótica constitucional, não resta dúvida: a cassação da liberdade de comunicação naquele episódio configurou violação direta ao art. 5º, incisos IV e IX, da Constituição, bem como ao art. 60, §4º, IV, que erige as garantias individuais à condição de cláusula pétrea.
4. O peso histórico da censura
O episódio ocorrido em outubro de 2022, quando o Tribunal Superior Eleitoral, em decisão majoritária, optou por suspender a exibição de documentário de conteúdo político até a realização do segundo turno das eleições, não pode ser tratado como simples ato administrativo de conveniência eleitoral. Muito menos pode ser relativizado como uma “exceção necessária” ou um “sacrifício momentâneo em prol da lisura do pleito”. O que ali ocorreu foi algo de natureza infinitamente mais grave: uma ruptura institucional silenciosa, pela qual se legitimou a relativização de cláusula pétrea da Constituição da República.
A Ministra Cármen Lúcia, em seu voto, deixou explícita a contradição: “não se pode permitir a volta da censura” e, ao mesmo tempo, “em situação excepcionalíssima” consentiu em praticá-la até o dia 31 de outubro. Tal manifestação consubstancia, em termos jurídicos, uma confissão de inconstitucionalidade voluntária. Reconheceu-se o erro, admitiu-se a vedação absoluta, mas se cedeu em nome de um suposto bem maior.
O problema é que a Constituição não admite essa lógica utilitarista. A República Federativa do Brasil não foi edificada sobre a conveniência dos governantes, mas sobre a supremacia da lei fundamental. Se se abre a porta da exceção, o pacto constitucional deixa de ser escudo e passa a ser mera referência retórica.
A história constitucional brasileira registra dolorosos capítulos de supressão de liberdades. No Estado Novo (1937–1945), a censura foi o instrumento preferencial de Getúlio Vargas para sufocar opositores. Durante a ditadura militar (1964–1985), a censura prévia atingiu jornalistas, artistas e professores, simbolizando a face mais cruel do autoritarismo. O constituinte de 1988, ciente dessas chagas, erigiu a liberdade de expressão como cláusula pétrea justamente para evitar que futuros julgadores ou legisladores caíssem na tentação de repetir tais práticas. Por isso, a decisão de 2022, ainda que temporária, trouxe de volta um fantasma que deveria estar sepultado: o da censura legitimada por um tribunal.
5. A ruptura do pacto de confiança
A Constituição não é apenas um documento jurídico; é, sobretudo, um pacto de confiança entre o Estado e a sociedade. O cidadão comum precisa acreditar que seus direitos fundamentais são inabaláveis, mesmo diante de conjunturas adversas. Quando a Suprema Corte Eleitoral, sob o pretexto de proteger as eleições, decide restringir a liberdade de comunicação, rompe-se esse pacto de confiança.
Se os guardiões da Constituição podem, em nome de circunstâncias eleitorais, afastar direitos fundamentais, qual instância restará ao povo para protegê-los? Essa é a essência da ruptura institucional: o guardião transforma-se em violador, e a Corte encarregada de proteger a lisura eleitoral passa a minar a própria legitimidade do processo democrático.
6. Orwell e a crítica literária da exceção
George Orwell, em sua obra “A Revolução dos Bichos”, retratou como regimes nascem com promessas de igualdade e liberdade, mas, pouco a pouco, justificam exceções que corroem esses valores até substituí-los por seu oposto. O famoso mandamento dos animais, “Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros”, simboliza a institucionalização da contradição, da exceção como regra.
O paralelo com a decisão do TSE em 2022 é inevitável: afirmou-se que a censura era vedada, mas autorizou-se, de forma “excepcionalíssima”, a censura. Ou seja: todos têm direito à liberdade de expressão, mas alguns conteúdos podem ser mais “indesejados” que outros. Essa relativização, que começa em um ponto específico, abre caminho para que o arbítrio se naturalize.
7. A perspectiva internacional e o Pacto de San José
No plano internacional, a violação à liberdade de expressão é ainda mais evidente. O Brasil é signatário da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, o Pacto de San José da Costa Rica, promulgado pelo Decreto nº 678/1992. O art. 13 do Pacto estabelece: “Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e ideias de toda natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente, por escrito ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo à sua escolha.”
O mesmo dispositivo, em seu §2º, é taxativo: “O exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar sujeito a censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores.”
O Supremo Tribunal Federal, em diversos julgados, já reconheceu a natureza supralegal do Pacto de San José, conforme a paradigmática decisão no RE 466.343/SP (Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 03/12/2008), em que se fixou que tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil possuem hierarquia superior à legislação ordinária. Portanto, ao impor censura prévia em 2022, o TSE não apenas violou a Constituição brasileira, mas também descumpriu obrigações internacionais assumidas pelo Estado brasileiro.
Não é irrelevante lembrar, ainda, da ADPF 187 (Rel. Min. Celso de Mello, j. 15/06/2011), na qual o STF reafirmou que a liberdade de expressão possui caráter preferencial, sendo o espaço público de debate político o âmbito mais protegido. Qualquer tentativa de suprimir manifestações sob o argumento de “ordem pública” ou “conveniência eleitoral” é incompatível com a Constituição e com os tratados internacionais.
Portanto, sob a perspectiva internacional, a decisão de 2022 representa afronta ao Pacto de San José da Costa Rica, ao qual o Brasil se vinculou soberanamente. Ao permitir a censura, ainda que temporária, o TSE colocou o Brasil em rota de colisão com o sistema interamericano de proteção dos direitos humanos, enfraquecendo a posição do país perante a comunidade internacional.
Conclusão
Talvez o maior risco não seja a censura decretada por tribunais, mas o silêncio imposto pelo medo. Quando o cidadão já não ousa falar por receio de ser punido, a liberdade deixou de existir. Como alertou Orwell, “a liberdade é a liberdade de dizer que dois e dois são quatro; se isto é admitido, tudo o mais decorre.” Que este texto não seja motivo de perseguição, mas de reflexão, pois quando a crítica se torna crime, a democracia já morreu. Em que pese eu entender que a constituição brasileira foi suspensa desde aquela data de la para ca, tudo que foi criado, implantado e modificado, se deu sob a égide de uma constituição pensada e não escrita.